terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Os caminhos das paixões, em Hobbes


Escrever pra Filosofia sempre consome muita energia, mas em algum momento, deslanchamos os muitos pensares. Por aqui, vou aos poucos postando alguns textos. Estas anotações fiz entre dias doentios e frios de maio e junho/2007



Hobbes viveu num período marcado por divergências religiosas, queda de monarquias absolutas, crises econômicas e ao mesmo tempo, vibravam atualidades a partir das obras de Descartes, Newton, Kepler e Bacon, ou seja, vivenciava-se o impacto da “revolução científica” e seus paradigmas. Quem define bem esse período é Boaventura de Sousa Santos, em seu livro Um discurso sobre as ciências:
...a característica fundamental e a que melhor simboliza a ruptura do novo paradigma científico com os que o precedem. Está consubstanciada, com crescente definição, na teoria heliocêntrica do movimento dos planetas de Copérnico, nas leis de Kepler sobre as órbitas dos planetas, nas leis de Galileu sobre a queda dos corpos, na grande síntese da ordem cósmica de Newton e finalmente na consciência filosófica que lhe conferem Bacon e sobretudo Descartes.[1]

Hobbes fugiu da Inglaterra em 1640 temendo a guerra civil. Exilado na França, escreve “O Leviatã” em 1651, ano em que também decide retornar a Inglaterra. Mas o regresso também tinha lá seus perigos. Algumas posições expostas em seu texto foram consideradas uma ofensa à monarquia. Hobbes era visto como oportunista, o governo francês desconfiava da sua figura e o tinha sob suspeita devido a seus ataques à Igreja. Mas é com a clara intenção de restabelecer um estado de paz e harmonia com o novo regime, que Hobbes retorna a Inglaterra. Admitiu na sua biografia que – “o temor e eu somos irmãos gêmeos” [2]fazendo uma confissão pública de amor à paz, a ordem e de horror às discussões políticas e religiosas que tanto eclodiam.
Hobbes produziu uma teoria segundo a qual o Estado originou-se do contrato firmado entre os indivíduos enquanto estes se encontravam no estado da natureza. Cabe aqui, ressaltar que o estado de natureza é para nosso autor, qualquer situação onde não há um governo que estabeleça a ordem. Esta postura faz com que este filósofo seja reconhecido como um contratualista, categoria em que, também estão inclusos Locke e Rousseau.
Em Leviatã, Hobbes procurou analisar a essência e a natureza do Estado Civil, ao qual, em razão de seu poderio e de sua força, comparou ao monstro bíblico descrito no livro de Jó. Tanto é assim que o denominou de "grande Leviatã". Na definição de Hobbes, o Leviatã

(…) que não é senão um ser humano artificial, embora de maior estatura e força do que o homem natural, para cuja proteção e defesa foi projetado. E no qual a soberania é uma alma artificial, pois dá vida e movimento ao corpo inteiro; os magistrados e outros funcionários judiciais ou executivos, juntas artificiais; a recompensa e o castigo (pelos quais, ligados ao trono da soberania, todas as juntas e membros são levados a cumprir seu dever) são os nervos, que fazem o mesmo no corpo natural; a riqueza e prosperidade de todos os membros individuais são a força; Salus Populi (a segurança do povo) é seu objetivo; os conselheiros, através dos quais todas as coisas que necessita saber lhe são sugeridas, são a memória; a justiça e as leis, uma razão e uma vontade artificiais; a concórdia é a saúde; a sedição é a doença; e a guerra civil é a morte. Por último, os pactos e convenções mediante os quais as partes deste Corpo Político foram criadas, reunidas e unificadas assemelham-se àquele Fiat, ao "Façamos o homem" proferido por Deus na Criação. [3]

Hobbes busca demonstrar similaridades entre as paixões humanas e a constituição de uma sociedade civil organizada, contribuindo assim com a idéia de que existe só uma forma de conhecimento, e este se encontra no determinismo mecanicista. Um conhecimento que precisa da redução, da comparação, do rigor das medições, da organização, de regras. Conhecer implica necessariamente dividir, classificar para depois determinar, construir um método, delimitar poderes e direitos individuais que funcionem para compreender e regular as paixões humanas e as relações políticas dos indivíduos.
O determinismo mecanicista é o horizonte certo de uma forma de conhecimento que se pretende utilitário e funcional. No plano social, esse é também o horizonte cognitivo mais adequado aos interesses da burguesia ascendente que via na sociedade em que começava a dominar o estádio final da evolução da humanidade. [4]

Quando tracejamos os rumos da história do pensamento, da política, e também das relações pessoais, intelectuais e afetivas à época, podemos pensar sim que Hobbes faz da sua obra prima, um pressuposto de ordem e de estabilidade para o mundo. É urgente dar uma delimitação à condição humana, pois como poderíamos estabelecer um Estado, sem antes delimitar as razões e as paixões?
Este vínculo que busca delimitar e/ou comparar as paixões humanas e a estrutura de um Estado é tão presente na sua obra que, ainda na introdução do livro, Hobbes indica:
Aquele que vai governar uma nação inteira deve ler, em si mesmo, não este ou aquele indivíduo em particular, mas o gênero humano. O que é coisa difícil, mais ainda do que aprender qualquer língua ou qualquer ciência,... [5]

É preciso que o ser humano leia-se a si mesmo, pois lhe são somente as paixões (e não os objetos das paixões) comuns a todos os seres humanos, submetidos às mesmas circunstâncias.Por isso é vital ter a compreensão do ser humano por quem detém o poder, pois somente assim é possível executar ações com o intuito da consecução para o qual o Estado foi criado, que é a garantia de paz e segurança aos indivíduos.
Com base neste entendimento, Hobbes nos apresenta sua visão acerca dos sentimentos e emoções que movem o ser humano. Para este autor a sensação é a primeira impressão, e esta nos acontece por objetos ou acontecimentos exteriores.
A sensação é vista como uma ilusão originária, causada pela pressão, isto é, pelo movimento das coisas exteriores nos nossos olhos, ouvidos e outros órgãos a isso determinado. [6]
Segundo o autor, não é necessário que façamos uma distinção, entre substância extensa corpórea e substância espiritual pensante tal como Descartes indica:
De um lado, tenho uma idéia clara e distinta de mim mesmo, na medida em que sou apenas uma coisa pensante e inextensa, e que, de outro, tenho uma idéia distinta do corpo, na medida em que é apenas uma coisa extensa e que não pensa, é certo que este eu, isto é, minha alma, pela qual eu sou o que sou, é inteira e verdadeiramente distinta de meu corpo e que ela pode ser ou existir sem ele. [7]
Ou seja, não podemos conceber qualquer pensamento sem uma coisa que pense, uma vez que a origem de todo pensamento está diretamente ligada
àquilo que denominamos sensação, pois não há nenhuma concepção no espírito do homem, que primeiro não tenha sido originada, total ou parcialmente, nos órgãos dos sentidos[8]
Tanto os sujeitos como os objetos, serão corpos, e desta forma, Hobbes corajosamente reduz toda a realidade a um conjunto de corpos em movimento. Podemos dizer então que o indivíduo hobbesiano é sim resultado de um princípio de causalidade mecânica, pois é através de movimentos recebidos através da sensibilidade que teremos as paixões. E é através desse princípio de causalidade mecânico-empírica, que derivarão todas as “paixões humanas” como a alegria, tristeza, ódio, vingança, medo, esperança, etc.
De início temos que “as paixões humanas” resultam da ação de corpos externos que causam movimentos internos em outros corpos. Porém, o processo que viabiliza as paixões não é assim tão simples, pois não é causado apenas por uma ação e reação. Parece-nos que ela é apenas um efeito do que acontece no ser humano. Antes, há uma força que atua no interior desse ser e que é a responsável pela forma com que as paixões ocorrem. Essa força será um movimento que primeiro acontece no interior da mente, e por uma série de transmissões, culminará na realização do movimento corporal. Esse movimento se processa no interior do ser humano e precede a relação entre os movimentos. É o que Hobbes denomina esforço.
...é evidente que a imaginação é a primeira origem interna de todos os movimentos voluntários. E embora os homens sem instrução não concebam que haja movimento quando a coisa movida é invisível, ou quando o espaço onde ela é movida (devido a sua pequenez) é invisível, não obstante esses movimentos existem.
...
Estes pequenos inícios do movimento, no interior do corpo do homem, antes de se manifestarem no andar, na fala, na luta e outras ações visíveis, chamam-se geralmente esforço. 
Este esforço, quando vai em direção de algo que o causa, chama-se apetite ou desejo,...[9]
O pensamento de Hobbes nos aponta aí então outra questão que ainda carece, a meu ver de respostas.
Se as paixões humanas são caracterizadas de acordo com aquilo que lhe é externo, isto parece nos dizer que, determinada atitude pode ser vista como uma má atitude na medida da conseqüência que ela trará ao sujeito que a praticou. Ora, seria possível pensar que, se entre duas pessoas houver uma desconfiança recíproca, e um deles, num golpe, tirar a vida do outro, essa atitude será benéfica para aquele que desferiu o golpe, podendo reclamá-la como boa então?
Será que aqui não se expressa uma dimensão de relativismo à teoria das paixões? Penso que a resposta continua pelos escritos que o nosso autor aponta no capitulo VI do Leviatã, quando nos diz, que não há lei do certo ou do errado enquanto não houver Estado. (pág. 58)
É preciso pensar então que o bem e o mal só podem ser medidos de acordo com as conseqüências que cada ação causa para um determinado indivíduo. Lembrando é claro, que o que pode significar o bem para um@[10], pode também ser o mal de outr@, e ainda podemos reforçar aqui a máxima tão em moda já em nosso século, de que o que é bom hoje pode não o ser amanhã. A partir dessas definições devemos caracterizar todas as paixões humanas tais como justiça, felicidade, amor, etc.
A teoria das paixões para o nosso autor é pensada sempre pelos sinônimos e antônimos dos movimentos, das paixões, ou seja, o mesmo movimento que causa o amor causa também o ódio, e a diferença existente entre amor e ódio reside, única e exclusivamente, na conseqüência que essas geram para cada pessoa. Quando o movimento causa um efeito positivo, a paixão gerada é o amor, se o efeito causado for negativo, teremos então o ódio.
Quando um determinado objeto consegue incitar as pessoas a um esforço no sentido de tentar alcançar, conquistar - esse impulso é o “desejo”. Quando esse esforço se dá no sentido de afastar o objeto recebe o nome de “aversão”. Em suma, desejo e aversão significam movimentos, um de aproximação outro de afastamento E a imobilidade diante desses objetos, ou seja, a indiferença é o que ele chama de “desprezo”.
Deste modo podemos dizer que o grande fundamento, o motor de todo esse movimento de idéias reside no fato do desejo de se atingir algo, de se conquistar algo. Essa é a pedra fundamental que sustenta o edifício da constituição humana do ponto de vista de suas paixões. É o movimento que traz para si aquilo que é útil, e é a força que repudia, que afasta tudo que possa servir de ameaça. Seriam então duas forças: uma que visa atender aos apetites e desejos e outra que os afastam, que nos ameaçam? Hobbes não admite dualismos.
O fato é que uma tendência que sempre se manifesta, ora para os desejos, para as aproximações, ora para o ódio, para o distanciamento e esse fato está sempre buscando saciar o desejo de auto preservação de cada um@.
O fato de Hobbes trabalhar as paixões sempre em contrastes (amor/ódio, desejo/aversão, medo/esperança) não significa que a origem dessas paixões seja antagônica. Para ele, as paixões desempenham um papel dúbio, isto é, se por um lado a desconfiança natural, o egoísmo e a competição por poder e mais poder, levam o indivíduo a um estado de tensão eminente. Por outro lado, o medo de ter sua vida perpetuada nesse estado instável, e a esperança de que se pode sair dele, leva este indivíduo a buscar meios para construir um corpo político.
Para Hobbes a convivência entre os seres humanos é naturalmente conflituosa, pois viver sujeito às paixões leva os seres humanos inevitavelmente a um estado de tensão eminente. Contudo, para eliminar esse estado, o indivíduo, após uma série de ponderações acerca de sua realidade, trabalha no sentido de construir um aparato jurídico que possa regular a vida comum, e assim não mais viver sob a tutela da pura força. Nesse momento se fará presente a esperança, como uma paixão ativa que atuará de mãos dadas com o medo, anulando-o e possibilitando a crença de que, no Estado civil regido por leis positivas, as pessoas não viverão em guerra e a paz poderá ser alcançada.
Fico por aqui, sob pena de cometer erros por conta de uma leitura ainda fragmentada acerca dos pensamentos deste autor. Tomo consciência entranto, de que é preciso continuar a buscar uma compreensão, de entender onde mora a esperança indicada por este filósofo que por ironia ou infortúnio do destino, precisou ao fim da sua vida silenciar suas idéias.
Com a Restauração da monarquia inglesa, em 1660, na pessoa de Carlos II, Hobbes voltou a ser  admitido na corte, contra o parecer dos bispos, passando inclusive a receber uma pensão do rei. Em 1666-67 Hobbes sentiu-se realmente ameaçado, devido à tentativa de aprovação no Parlamento de uma lei contra os ateus, e os profanadores de túmulos, já que a comissão encarregada de discutir a lei  tinha por dever analisar O Leviatã. Hobbes defendeu-se afirmando que não havia na Inglaterra nenhum tribunal com jurisdição sobre as heresias. O parlamento acabou por não aprovar a lei contra o ateísmo, mas mesmo assim Hobbes nunca mais pôde publicar sobre a conduta dos homens, possivelmente foi o preço que o rei acordou para Hobbes ser deixado em paz.[11]
Parece que ao final da história desse importante filósofo, a sua grande obra prima, tornou-se também o seu silêncio. Cabe então, re-escrever e refletir sobre as comparações que encontramos em seus escritos que tratam da origem interna das paixões para que possamos compreender mais um contraste na obra e vida de Tomas Hobbes:
O apetite, ligado à crença de conseguir, chama-se esperança.
O mesmo, sem essa crença, chama-se desespero.
A opinião, ligada à crença de dano proveniente do objeto, chama-se medo. [12]
Penso então, que a esperança de fato, transformou-se em medo, por obra e destino até mesmo daquele que a procurou definir para um estado de liberdade à consciência e à condição humana.



Bibliografia consultada:

  1. SANTOS, BOAVENTURA DE SOUSA. Um discurso sobre as Ciências. Edições Afrontamento. 12º edição 1987, Porto/Portugal (pág. 11).
  1. Ribeiro, Renato Janine. Ao leitor sem medo. Hobbes escrevendo contra o seu tempo. In: Artigos de divulgação, Filosofia Política. Disponível em: www.renatojanine.pro.br/FiloPol/hobbes.html. Acesso em: 23.05.2007.
  1. Hobbes,Tomas. Leviatã ou Matéria, forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Trad. de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz N. da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 1992
  1. DESCARTES, René. Meditações Metafísicas, Tradução, J. Guinsburg e Bento Prado Junior, Coleção Os Pensadores, 1ª edição, 1973.
  1. Portal da História, (cita como fonte da bibliografia: Enciclopédia Britânica). Disponível em: http://www.arqnet.pt/portal/biografias/hobbes.html. Acesso em: 01/07/07


Outras fontes pesquisadas:

Lisboa, W.. Algumas observações acerca do discurso mental e do discurso verbal em Thomas Hobbes. IN: DoisPontos, América do Sul, 3 26 05 2006. Disponível em: http://calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/doispontos/article/viewPDFInterstitial/5158/3881. Acesso em: 01/07/07
Leivas Claudio R. C., Situação de Conflito e Condição de obrigação em Hobbes.
IN: UFRGS-PPG de Filosofia - Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Disponível em: http://disputatio.com/articles/009-3.pdf.             Acesso em 23/05/06

3.      Souza. José F. Rodrigues., O lugar do individuo em Maquiavel e Hobbes.In: Revista InterSciencePlace – Universidade Salgado de Oliveira. Disponível em: http://www.universo.g12.br/publicacoes/inter_pdf/o_lugar_do_individuo.pdf. Acesso em: 23/05/07



Notas de rodapé:

[1] SANTOS, BOAVENTURA DE SOUSA. Um discurso sobre as Ciências. Edições Afrontamento. 12º edição 1987, Porto/Portugal (pág. 11).
[2] Ribeiro, Renato Janine. Ao leitor sem medo. Hobbes escrevendo contra o seu tempo.
In: Artigos de divulgação, Filosofia Política.
Disponível em: www.renatojanine.pro.br/FiloPol/hobbes.html. Acesso em: 23.05.2007.
[3] HOBBES, T. O Leviatã. Os Pensadores. São Paulo/SP: abril, 1992 (pág. 27 – Introdução).
[4] SANTOS, BOAVENTURA DE SOUSA. Um discurso sobre as Ciências. Edições Afrontamento. 12º edição 1987, Porto/Portugal (pág. 17).
[5] HOBBES, T. Ob. Cit. , pág. 28
[6] Hobbes, T. Obra Citada – pág. 32
[7] DESCARTES, René. Meditações Metafísicas, Tradução, J. Guinsburg e Bento Prado Junior, Coleção Os Pensadores, 1ª edição, 1973.
[8] Hobbes, T. Obra Citada – pág. 31
[9] Hobbes, T. Ob. Cit. Pág. 57 – Capítulo VI.
[10] Uso o símbolo @ para masculino e feminino, quando falo dos dois sexos.
[11] In: Portal da História, (cita como fonte da bibliografia: Enciclopédia Britânica).
Disponível em: http://www.arqnet.pt/portal/biografias/hobbes.html. Acesso em: 01/07/07
[12] Hobbes, T. Ob. Cit. (Pág. 60)

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